orria o ano de 1917 e o superintendente Abdon Baptista reassumira há poucos meses o comando da cidade, após uma temporada no Senado. Uma das suas primeiras medidas foi apresentar um balanço do que encontrou ao Conselho Municipal (equivalente à atual Câmara de Vereadores). Publicado pela Gazeta do Commercio, o relatório oferece um retrato único da Joinville de cem anos atrás, e como veremos, algumas coisas infelizmente não mudaram muito.
O superintendente começava a prestação de contas pelo balanço financeiro, que já naquela época fechava no vermelho, um desequilíbrio entre a arrecadação e os gastos da ordem de mais de 14 mil contos de réis. Ainda assim, Baptista via razões para otimismo, uma vez que o “deficit é de proporções menores do que no encerramento do exercicio anterior”.
O joinvilense que se dispusesse a avaliar os números apresentados talvez ficasse um pouco mais preocupado – afinal a arrecadação tinha superado o previsto em quase 40 mil contos de réis, e ainda assim o superintendente não conseguiu que as contas públicas encerrassem o período no azul...
Hospital de Caridade
Depois do balanço financeiro, o segundo assunto a bordado é o Hospital de Caridade, o antecessor do atual Hospital São José. Na opinião do superintendente, “este importante estabelecimento municipal continua preenchendo os seus elevados fins”, e ele dava conta que o “movimento de doentes” em 1916 havia superado o do ano anterior em 116.
O relatório trazia uma tabela com o tal movimento, que dividia os doentes não só entre homens e mulheres, mas entre nacionaes e estrangeiros, mostrando como há cem anos Joinville ainda era uma cidade de imigrantes. Das 381 pessoas atendidas no hospital no ano, quase 20% eram estrangeiras (74).
A divisão entre homens e mulheres também chama a atenção. O total de mulheres que passou pelo hospital (115) respondia por apenas 30% do número de pacientes – ou elas ficavam menos doentes há cem anos ou naquela época não eram levadas para receber tratamento. As taxas de mortalidade masculina e feminina, porém, eram semelhantes, respectivamente em 9% e 9,5%.
O superintendente dizia ter tomado algumas providências para atender o sensível aumento da demanda no hospital, com a “acquisição e installação de 8 latrinas patentes, 2 lavatorios, material para o laboratorio pharmaceutico e conclusão da nova sala de operações”.
Arquivo Histórico de Joinville
Hospital de CaridadeAssim era o Hospital de Caridade, inaugurado em 1906 no terreno doado pelo Padre Carlos Boegerhausen à Congregação das Irmãs da Divina Providência – essas eram as tais freiras elogiadas no relatório pelo diretor Gustavo Adolpho Richlin, pela sua capacidade de economizar com generos alimenticios.
Médico e diretor
Democraticamente, Abdon Baptista abria espaço para o relato de dois personagens diretamente ligados ao Hospital de Caridade, o “autorizado medico” Humberto Chaves de Gusmão, e o “esforçado Director”, Gustavo Adolpho Richlin. Cada um ao seu estilo, eles nos ajudam a entender em que termos funcionava o principal centro de saúde da cidade há cem anos.
O doutor Chaves de Gusmão oferece uma opinião um tanto mais sanguínea sobre o hospital, que “apezar de alguns defeitos grosseiros que ali se notam”, prestava “valiosos serviços mui especialmente à classe dos chamados indigentes” (a Edição 34 do Jornal Retrô mostrou como era difícil ser enquadrado nessa categoria, entretanto).
O médico elogiava a localização do hospital, “construído em um vasto parque cercado de belas alamedas”, em um dos pontos “mais seccos e arejados da cidade”, mas alertava para vários “defeitos e falhas”. “Taes defeitos e falhas”, dizia ele, podiam “ser removidos, desde que os poderes municipaes façam um pequeno esforço”.
Chaves de Gusmão pedia atenção especial ao precário “serviço de esgotos”, cuja melhoria ele afirmava ser “de absoluta e urgente necessidade”. A coleta no Hospital de Caridade, como aliás em todo o resto da cidade, ainda era feita através do “systema de cubos” (leia mais na Edição 8). O médico afirmava que dessa maneira Joinville estava “sujeita ao grande perigo de uma epidemia, principalmente durante a estação quente”. Como os cubos não eram exclusivos de cada residência, sendo “trocados à vontade de quem os remove, naturalmente, serão vehiculadores de germen”. A solução “inadiável”, ele defendia, era a “construcção de fossas”.
Arquivo Histórico de Joinville
Vasto parqueEssa foto mostra como era o entorno do Hospital de Caridade naquela época, o que ajuda a entender a avaliação do doutor Chaves de Gusmão de que o centro de saúde havia sido construído “em um vasto parque cercado de belas alamedas”. Erguido no mesmo lugar, o atual edifício de cinco andares do Hospital São José só começaria a ser construído em 1963, inaugurado seis anos depois.
Propedeutica hodierna
O médico prosseguia com a análise, tocando em um assunto que não perdeu importância cem anos depois: a necessidade de manter equipamentos e instalações do hospital atualizados. “Longe já se vão os tempos em que a medicina era feita pelos dedos e ouvidos”, ele afirmava. Além da “auscultação, palpação e percussão”, dizia Chaves de Gusmão, a “propedeutica hodierna” exigia que se fizesse uso de um recurso adicional, as “pesquizas de laboratorio”.
Na opinião dele, manter um laboratório “annexo a uma clinica” devia ser “cousa banal”, não um “objeto de luxo”. O médico não só dizia que estabelecer um “laboratorio modesto” e um gabinete de radiologia eram urgentes ao hospital, como oferecia uma aula de administração ao superintendente.
Segundo ele, com a aquisição o hospital “só poderia lucrar, assim como o corpo clínico d’esta cidade”, acrescentando que grande era o número de doentes que viajam a “S. Paulo, Curytiba ou Rio” para se submeter a um “exame radiologico” ou “à procura de uma reação de Wassermann”.
A análise do diretor é mais centrada nos grandes números, como seria de se esperar. Gustavo Adolpho Richlin faz questão de destacar como trunfo da sua administração a economia com “generos alimenticios”. Os gastos dessa natureza tinham somado aproximadamente 8,5 mil contos de réis em 1916, “apenas uma media de 546 réis por pessoa em cada dia”.
O diretor classificava o resultado como “muito lisonjeiro” e o atribuía principalmente “às irmãs”, as freiras que trabalhavam diretamente no hospital. Nas palavras de Richlin, elas “souberam economizar, sem por isso deixarem soffrer os pacientes recolhidos.”
Órfãos, desvalidos e alienados
Depois de tratar do hospital, o relatório do superintendente avança para a situação dos desfavorecidos em Joinville. Abdon Baptista comemorava que desde julho de 1916 a cidade contava com um “Asylo de Orphãos e Desvalidos” funcionando regularmente, no momento com “20 internados”. A instituição não era municipal, mas recebia uma subvenção anual de 2.400 contos de réis da Superintendência.
Baptista oferecia uma visão bem menos favorável de uma outra parcela de necessitados, no entanto, e não tinha receio de deixar clara sua opinião a respeito. “Tenho a informar ao Conselho que o serviço de assistencia prestado nesta cidade aos loucos é o mais incompleto e o mais lastimavel que se pode imaginar”.
Ele informava haver “entre 16 e 20 pessoas” recolhidas em um “edifício pequeno e sem condições hygienicas de natureza alguma”, onde não havia “a menor pratica dos preceitos scientificos em bem do conforto e do encaminhamento da cura, assim como falta segurança em diversos compartimentos destinados a loucos furiosos”.
Segundo Baptista, “nem se pode fazer coisa melhor”, porque “o problema de assistencia aos loucos” tinha que ser resolvido “por forma muito diferente”. Ele defendia a criação de “um hospicio obedecendo as regras da sciencia” em âmbito federal, “bastante vasto para recolher o grande numero de alienados que existe em quasi todos os municípios”. Só assim, afirmava o superintendente, poderiam ser extintos “d’uma vez esses tristes cárceres privados, que existem em algumas localidades onde são enclausurados taes doentes, sem assistencia alguma.”
Arquivo Histórico de Joinville
Escola AnaburgoA foto é alguns anos anterior ao relatório (data de 1910), mas oferece um retrato do que era a vida escolar em Joinville há cem anos, ao mostrar os alunos da Escola Anaburgo, localizada no atual bairro do Vila Nova. Vejam que todos pés das crianças à vista estão descalços.
Instrução primária
A prestação de contas também não pintava um quadro muito favorável da educação na Joinville de cem anos atrás, e a situação ainda iria piorar bastante até o final desse mesmo ano, depois que a entrada do Brasil na Primeira Guerra Mundial levou ao fechamento das escolas que ensinavam em alemão (leia mais na Edição 14 do Jornal Retrô).
Já em março o superintendente alertava para a falta de professores com “algumas habilitações e com vontade de ensinar o portuguez, e principalmente o pouco interesse dos paes em que seos filhos se habilitem a ser cidadãos brasileiros”. Das cinco escolas que estariam aptas a receber dinheiro público para ensinar em português, só três estavam funcionando. Para piorar, a taxa de aprovação apresentada no relatório mostra como era estreito o funil que levava à formação de um aluno naquela época.
No chamado “Primeiro Anno”, 34 crianças haviam sido matriculadas em 1916, mas apenas 20 foram aprovadas no final do período. Para o “Segundo Anno”, o número de matriculados somava 10, dos quais só 7 encerraram os estudos, sendo aprovados em dezembro. O “Terceiro Anno” contava ínfimos seis matriculados – mas pelo menos todos conseguiram concluir o ano escolar com sucesso.
Arquivo Histórico de Joinville
Bondes a burroAssim se via a Rua do Príncipe em 29 de janeiro de 1911, o dia da inauguração do serviço de bondes em Joinville, quando todos os carros da Empreza Ferro Carril Joinvilense desfilaram orgulhosamente pela cidade, partindo da estação ferroviária. Puxados por burros, os bondinhos circularam por quase sete anos, até que a companhia desistiu do negócio em 1917, o mesmo ano desse relatório do superintendente.
Viação Urbana
Abson Baptista reconhecia abertamente que diversas ruas da cidade não estavam “em boas condições de conservação”, o que ele justificava pela falta de “bom material para manter a macadamização dellas”. Ele prometia que a solução estava próxima, porém, porque a cidade recentemente havia adquirido “um britador e um locomovel para o preparo do material de bôa qualidade”, que de quebra resultaria em “sensivel economia” para os cofres municipais.
O superintendente listava outras obras públicas em andamento, entre elas a construção de uma rua que partia da “margem do Rio Cachoeira em frente a esta cidade”, que daria acesso ao Iririú e aos “numerosos habitantes da Boa Vista”, de forma que “a população urbana tenha alli com o correr do tempo um bairro attrahente”. A ponte que conectaria a cidade ao outro lado do rio também já tinha sido encomendada, a cargo do “sr. Max Miers”.
Abdon Baptista admitia que o “serviço de bonds” não vinha funcionando “com a normalidade indispensavel” - o horário era “demasiadamente espaçado e o material deteriora-se”.
O superintendente se comprometia a colaborar para uma solução, dispensando a Empreza Ferro Carril Joinvilense de qualquer imposto municipal, mas infelizmente isso não se mostraria suficiente. Essa já era a fase final da primeira experiência de transporte coletivo em Joinville. Os bondinhos puxados por burros haviam começado a cruzar a cidade em 1911, e deixariam de circular alguns meses depois, naquele mesmo ano de 1917 (lei mais na Edição 40 do Jornal Retrô).
Otimismo
Apesar de todas as dificuldades apresentadas, o balanço do superintendente terminava em um tom bastante otimista, afirmando que as condições econômicas do município evidentemente “melhoraram durante o anno transcorrido”.
Razões para o otimismo não faltavam: a renda municipal nunca havia atingido o “limite que alcançou agora” e as fábricas “estiveram sempre em atividade, elevando algumas a sua producção normal com o aumento de horas de trabalho”. Novas indústrias tinham sido fundadas no período, para produzir artigos cuja importação a guerra na Europa tinha interrompido, e graças a isso o “operariado” encontrava “trabalho com salarios regularmente remuneradores”.
Por fim, Abdon Baptista ainda relatava que os “productos da lavoura” vinham conseguindo “preços compensadores, com sahida prompta” e que no que dizia respeito ao “influxo da tranquilidade e da ordem”, era simplesmente “invejavel a vida afanosa do nosso Municipio”.
Gazeta do Commercio
03/03/1917
Abdon Baptista
Nascido em Salvador (BA), em 1851, Abdon Baptista era médico de formação, o que talvez explicasse a importância que ele dava ao Hospital de Caridade e a outras questões de saúde no relatório publicado pela Gazeta do Commercio. Baptista comandou Joinville por vários anos como superintendente – primeiro entre 1892 e 1894, e depois entre 1915 e 1921. Foi ainda deputado estadual, senador e governador do estado de Santa Catarina por um curto período, entre setembro e novembro de 1906.
Arquivo Histórico de Joinville
Gazeta do Commercio
03/03/1917
Gazeta do Commercio
03/03/1917
Gazeta do Commercio
03/03/1917
Gazeta do Commercio
03/03/1917
Gazeta do Commercio
03/03/1917
Gazeta do Commercio
03/03/1917